terça-feira, 18 de novembro de 2008

“E se melhor que isto for impossível?”


A doença mental é definida, de acordo com a DSM-IV TR, como “um comportamento significativo ou síndroma psicológico ou padrão que ocorre num indivíduo e que está associado a mal estar actual (sintoma doloroso) ou incapacidade (numa ou mais áreas importantes do funcionamento) ou a um risco acrescido de morte, sofrimento, incapacidade ou uma importante perda de liberdade. Além disto, este síndroma ou padrão não pode ser meramente uma resposta esperada e culturalmente sancionada face a um evento particular, como por exemplo, a morte de alguém amado. Qualquer que seja a causa original, deve ser considerado uma manifestação de uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica no indivíduo. Nem o comportamento desviante (e.g., político, religioso ou sexual), nem os conflitos que ocorrem entre o indivíduo e a sociedade são perturbações mentais, a não ser que o desvio ou o conflito sejam um sintoma de uma disfunção no indivíduo, como descrito acima” (in DSM-IV TR, 2000). No entanto, verificamos, desde logo, que esta conceptualização de doença mental se assimila ao modelo médico que descreve a doença física, uma vez que assenta essencialmente no pressuposto da importância biológica, deitando por terra a ideia do ser humanos como um ser biopsicossocial (Relvas, comunicação informal, Novembro 2008). Esta conceptualização de distúrbio mental determina que os sintomas indicam a presença deste apenas se são causados por uma disfunção subjacente. Desta forma a doença mental, na perspectiva deste manual de diagnóstico, descreve um processo de doença e não como as pessoas. Nesta tendência para simplificar através da quantificação, categorização e classificação, deixamos de ter a Maria e o Manuel, por exemplo, para passar a ter simplesmente duas pessoas deprimidas. Esta definição apresentada pela DSM-IV TR coloca, então, a ênfase no indivíduo e propõe alguma analogia com a doença física, pois define que o problema está no indivíduo (“…comportamento significativo ou síndroma psicológico ou padrão que ocorre num indivíduo…”), realçando uma situação específica e não a cultura, o ambiente em que o indivíduo se insere, em geral. Não podemos, neste sentido, esquecer que o indivíduo é um sistema que estabelece ligações interactivas com elementos de outros sistemas de que faz parte, em especial com a família.

Verificamos, assim, que as classificações propostas pela DSM-IV – TR não são neutras, estando política e culturalmente influenciadas (poderemos neste sentido apontar o exemplo da homossexualidade, que até 1973 era considerado pela DSM uma patologia). Será, por isso, fulcral citar Marc e Picard (1984, cit in Relvas 2000) que afirmam que “chamamos ‘normal’ a tudo o que nos é familiar e ‘louco’ a tudo o que não compreendemos”. Quem define o que é normal? E se como diz Barros (n.d.) “Ser normal não é ser sadio porque a normalidade pode ser doentia”? Neste contínuo entre o normal e o patológico é difícil distinguir entre distúrbio e não distúrbio, uma vez que não existem fronteiras nítidas entre a patologia e a normalidade. Se pensarmos agora no contexto da família, Boscolo e col. (1993, in Relvas, 1999) afirmaram que não existe uma definição daquilo que uma família “deve ser”. Cada sistema familiar tem as suas características e formas de relacionamento interpessoal próprias, que emergem da soma de todos os elementos que constituem o sistema, o que nos remete para a importância de cada indivíduo e para o papel que a história e a cultura detêm para o sistema familiar. Assim sendo, assume-se que quem sabe o que o que é melhor para o sistema (neste caso a família) é o próprio sistema, que dadas as suas competências, tem no seu seio a informação necessária para poder mudar, desbloqueando o seu funcionamento (Ausloos, 1996). De acordo com Relvas (2000), é a capacidade evolutiva da família que determina a ausência ou presença de problemas no seu seio. Desta forma, a perturbação que o sistema familiar apresenta está directamente relacionada com o momento de desenvolvimento que este está a ultrapassar (Relvas, 2000). Ora, como Ausloos (1996) afirmou, o funcionamento do sistema e consequentemente o dos indivíduos que o constituem é-nos comunicado através do sintoma. Sob a forma de uma mensagem, o sintoma é, então, “uma via privilegiada de compreensão das ligações do indivíduo aos sistemas de que faz parte” (cit Ausloss, 1996, ).

Concluindo, e tendo em conta as afirmações de Lopes, Lopes & Lobato (2006), o diagnóstico permitido pela DSM-IV TR, ao centrar a pessoa na sua dificuldade, implica uma definição de ser, uma identidade, que se tenham em conta as características que definem a essência do “outro” (Ravazzola, 1997, in Lopes, Lopes & Lobato, 2006). À medida que o indivíduo em causa vai aceitando o rótulo que lhe é imposto, como fazendo parte do seu ser, estas características vão-se cristalizando. O modelo médico desvaloriza, muitas vezes, o poder do campo emocional/afectivo, dos comportamentos e pensamentos na “construção de profecias auto-realizáveis” (Ravazzola, 1997, in Lopes, Lopes & Lobato, 2006), ignorando o efeito que a linguagem tem na construção da (nossa) realidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Valeu a pesquisa e expressa alguma compreensão do tema
APR