terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Hipotetizando...

Ainda no decorrer desta aula foi-nos proposto um exercício distinto, cujo objectivo era a o debate em grupo e consequente construção de hipóteses sistémicas acerca do seguinte caso apresentado:


Caso clínico

Maria, 22 anos, estudante de um curso técnico-profissional (11º ano). Medicada com ansiolíticos e antidepressivos. Tem 2 irmãs, uma mais nova (9º ano) e outra mais velha (licenciada), e um irmão (10º ano) que vivem lá em casa. Os pais são ambos operários e têm ambos 50 anos.

História de Vida

“Tive várias depressões desde os 16 anos e sou, desde aí, tratada por um psiquiatra. Aos 17 anos as coisas estavam tão difíceis que cortei os pulsos, mas o meu pai encontrou-me na casa de banho e fui levada para o hospital. Sinto que sou uma pedra na vida dos meus pais.

Tudo começou aos 16 anos quando tive as primeiras negativas. Até aí era uma menina-prodígio: toda a gente achava que eu podia ser o que quisesse. Era boa aluna, cantava no coro da igreja, fazia peças de teatro, tinha alegria. Mas é tudo uma hipocrisia. Quando tive, no 10ºano, as primeiras negativas senti-me tão mal que antes das provas globais terem começado já estava de cama. Acho que vou ter uma vida desgraçada no futuro. Não me consigo apaixonar e fujo de todos os rapazes. Não vou nunca fazer aquilo que gostava e ainda vou trabalhar para uma fábrica. Sou um falhanço. Às vezes acho que sou uma histérica, como a minha mãe, desisto de tudo com facilidade, como no ano passado no estágio... Acho que sou um fracasso. Agora ando com o Zé, mas acho que não gosto dele; sinto-me bem na sua companhia... Quase não tenho amigos – irrita-me a felicidade dos outros. E aqueles que me ficam e que acho que me compreendem, como a Teresa, não prestam, são más companhias. Pelo menos é o que diz a minha mãe... Acho que decepcionei toda a gente, principalmente os meus pais! E agora, como se não bastasse, por vezes bebo de mais.”


Hipóteses

H1: O subsistema parental pode ter expectativas muito elevadas em relação “à boa aluna” que anseiam que a Maria seja;

H2: Pressão por parte dos pais para que tenha um bom desempenho escolar, visto que a irmã já tem uma licenciatura;

H3: Relacionado ainda com a questão das elevadas expectativas que os outros têm para si, a Maria pode sentir que o mau desempenho escolar seja uma forma de auto cumprimento das suas profecias, trazendo-lhe isso ganhos secundários para si e para o sistema, uma vez que culpando os outros não tem que aceitar os seus falhanços;

H4: Má adaptação da Maria às novas exigências do contexto escolar (transição para o ensino secundário);

H5: A mãe pode sentir-se assustada com a saída dos filhos de casa, querendo ser a grande amiga e confidente da sua filha;

H6: Estará a Maria “presa” à família, sentindo-se desleal por ter amigos fora do sistema familiar ou mesmo um namorado?

H7: Será que estes pais, tendo em conta que estão na meia idade, se sentem dois estranhos na presença do outro, uma vez que já não têm que dispensar tanta atenção aos filhos? Terão estes pais desaprendido a ser marido e mulher?

H8: Sentir-se-á a Maria a trair a sua família ao avançar nos estudos, uma vez que os seus pais não o fizeram?


Tendo, ainda, como finalidade principal o treino na colocação de hipóteses sistémicas, durante a aula seguinte (3 de Dezembro), fomos confrontados novamente com o caso da Joana, tendo neste caso que reflectir acerca da hipótese sistémica.

A Joana... era uma estudante universitária que sempre tinha tido problemas com os pais. Os problemas com os pais tinham começado há muito, desde antes do divórcio destes. O pai foi desde sempre uma pessoa dominadora e a mãe era submissa. Desde o divórcio dos pais, a Joana tinha tido dificuldade em gerir os conflitos entre aqueles, que ocorriam por causa das mais pequenas coisas: o dinheiro que o pai se esquecia de enviar, a sua não comparticipação em despesas diversas, a hora de chegada da Joana quando saía à noite, as suas classificações escolares, e até os seus conflitos com a irmã mais nova. Parecia que os pais viviam em planetas distintos, com regras de funcionamento incompatíveis e não se cansavam de tentar mostrar ao outro que ele/ela estava errado. As coisas complicaram-se ainda mais quando, recentemente, a Joana foi encontrada na casa de banho da escola a fumar haxixe com uma colega. Ela garantiu que só experimentou uma ou duas vezes e que nunca tentaria drogas duras, mas os pais entraram em pânico e, na escola, os colegas com que se dava antes recusam agora a sua companhia.


Possíveis queixas que a Joana poderia apresentar:

P1: Tem problemas com os pais;

P2: Sente-se só.


Hipóteses

H1: A Joana sente-se num conflito de lealdades entre um pai dominador e uma mãe submissa;

H2: Falha dos pais no exercício da sua função executiva (falta de unanimidade por parte deste no estabelecimento de regras);

H3: A Joana sente-se envergonhada pelo episódio da casa de banho, afastando-se dos colegas;

Neste sentido, o que tentámos fazer com estes dois exercícios foi, de acordo com o que Pallazoli e col. (1980) teorizaram acerca da hipótese sistémica, formular hipóteses baseadas nas informações que possuíamos a propósito do sistema familiar que nos foi apresentado. Assim, as hipóteses por nós colocadas nada mais são do que suposições, que não possuem à partida qualquer valor de verdade ou falsidade, devendo ser refutadas ou comprovadas no decorrer da entrevista com a família. Sendo uma actividade experimental, a hipótese sistémica permite a organização das informações que o sistema nos transmite, estando o seu valor relacionado com a maior ou menor utilidade que apresenta neste sentido (Relvas, 1996). Assim, podemos dizer que esta se apresenta como ponto de partida para a sua própria exploração e verificação de validade (por isso, antes mesmo da primeira sessão deve colocar-se uma primeira hipótese). Quando a hipótese se revela falsa, o terapeuta deve refutá-la, formulando uma nova hipótese que se baseará na informação obtida através da verificação da primeira. Para que tal verificação seja possível é necessário recorrer a algumas técnicas ou métodos específicos – a circularidade e a neutralidade, intimamente relacionados. A primeira técnica ganha forma através do questionamento circular e permite averiguar, modificar ou melhorar a hipótese colocada através das respostas imediatas conseguidas no âmbito desta forma de questionamento, que consiste na metacomunicação por parte de cada elemento do sistema acerca da relação estabelecida entre outros elementos da família. Assim, a circularidade permite ao terapeuta conduzir a investigação acerca da hipótese, baseando-se nas retroacções realizadas pelo sistema familiar em resposta aos aspectos questionados por este e que estão relacionados com as diferenças e semelhanças nas relações estabelecidas pelos elementos da família. Ora, neste sentido surge o segundo método – a neutralidade. Esta é, então, definida por Pallazoli e cols. (1980) como o “efeito pragmático específico que o seu comportamento total [do terapeuta] durante a sessão produz sobre a família” (cit. in Relvas, 2003). Pressupondo, este aspecto, que o terapeuta se deve abster de tecer qualquer comentário valorativo acerca dos indivíduos ou dos comportamentos por estes manifestados, bem como de estabelecer uma aliança com algum dos elementos do sistema, todos os elementos da família devem sentir-se acolhidos por este. Assim, a neutralidade alia-se ao questionamento circular permitindo prosseguir a exploração das hipóteses que vão sendo colocadas. Tal justifica-se, uma vez que um posicionamento neutro por parte do terapeuta permite que este estabeleça, ao mesmo tempo, alianças com cada indivíduo e com ninguém em particular, sendo, então, possível continuar manter um questionamento circular, que lhe faculta acesso a informação variada (idem, 2003; comunicação informal, Dezembro de 2008).

Acerca da hipótese sistémica importa ainda referir dois aspectos fulcrais: valor e função. Neste sentido a hipótese apresenta-se como o equivalente funcional do diagnóstico, promovendo a interacção dinâmica entre avaliação e tratamento, pois, tal como Minunchin afirmou, diagnóstico e tratamento são inseparáveis. Assim, através dela o terapeuta poderá introduzir “o inesperado e o improvável num texto que impede que a família imponha o seu próprio texto linear”, i.e., a sua própria hipótese.

Como já foi referido anteriormente, apesar da hipótese sistémica não ser, em si mesma, verdadeira ou falsa, esta deve ser, no entanto, útil e adequada. Assim, uma hipótese revela-se útil, de acordo com a primeira cibernética, se permitir conduzir a sessão terapêutica, através da introdução de um novo texto sobre a família e as suas dificuldades. Já para a segunda cibernética, para além deste aspecto, a hipótese revela a sua utilidade se permite fazer reenquadramentos, i.e., novos quadros da situação (conseguidos através de outros pontos nodais da mesma história), diferentes da perspectiva que a própria família construiu. Por outro lado, a adequação da hipótese formulada verifica-se se a família se reconhece nesse novo texto que lhe é oferecido, e que nunca pode ser igual á história antiga. (Relvas, 2003; comunicação informal, Dezembro de 2008).

Posto isto, importa reflectir um pouco acerca dos elementos que permitem a construção deste tipo de hipóteses num contexto de terapia familiar. Antes de mais é necessário conhecer vários modelos teóricos acerca da família e do seu funcionamento. O recurso a um qualquer paradigma revela-se adequado desde que este seja útil. Se este pressuposto for cumprido, o modelo utilizado funcionará como uma lente, através da qual o terapeuta reflecte acerca da informação que recolhe junto do sistema familiar. Ou seja, neste sentido o(s) paradigma(s) escolhido(s) pelo terapeuta (estando esta escolha relacionada com o self deste) influenciará a sua visão daquele sistema familiar, sendo a sua perspectiva distinta daquela que o sistema desenvolveu no seu seio. Ora, aqui encontramos as “outras lentes” referidas na metáfora por mim escolhida, e que se referem à possibilidade do sistema terapêutico (constituído pelo terapeuta e elementos do sistema familiar) co-construir um novo “mapa” da família, que permita aos indivíduos abandonar as suas hipóteses rigidificadas e repetitivas, modificando a sua forma de construir os seus próprios “mapas”. São múltiplas visões que permitem “novas histórias, novos significados, novas acções, novos sentimentos, novos comportamentos”, proporcionando ao sistema familiar a mudança, catalizada pelo terapeuta como condutor da sessão, que deixa de ser visto como perito, i.e., como o detentor de uma capacidade para observar a realidade e organizações da família de forma objectiva, que lhe permitem determinar e controlar os passos da mudança que deve ser efectuada para que o problema seja resolvido. Tal é possível devido às múltiplas visões que a análise de uma realidade pode suscitar, que não se anulando umas às outras permitem oferecer à família uma nova visão da situação em que vivem, o que não sendo “a” verdade se apresenta como “outra e nova” verdade para o sistema familiar (Relvas, 1996; 2003; comunicação informal, Dezembro 2008).


Um comentário:

Anônimo disse...

E implicações pragmáticas dos exercícios? o que aprendeu, ou não atingiu, com a sua realização?