terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O "telefone estragado" e o processo de rotulação

Tendo como ponto de partida 3 breves histórias de uma adolescente, com o mesmo conteúdo, diferindo apenas no seu começo, i.e., no “rótulo” atribuído à Joana, era pedido a um aluno (de cada grupo) que memorizasse uma das histórias, enquanto os restantes elementos do grupo esperavam fora da sala. Depois, esse aluno teve que contar a história que havia memorizado ao colega que entrasse, de seguida, na sala. O processo foi repetido com os restantes colegas que iam regressando ao grupo, tendo os “observadores” (dois por grupo) que registar tudo o que fosse ocorrendo. No caso da Joana que sofria de esquizofrenia paranóide contou-se a seguinte história…


História 1) A Joana... sofria de esquizofrenia paranóide e estava internada no hospital. Os problemas com os pais tinham começado há muito, desde antes do divórcio destes. O pai foi desde sempre uma pessoa dominadora e a mãe era submissa. Desde o divórcio dos pais, a Joana tinha tido dificuldade em gerir os conflitos entre aqueles, que ocorriam por causa das mais pequenas coisas: o dinheiro que o pai se esquecia de enviar, a sua não comparticipação em despesas diversas, a hora de chegada da Joana quando saía à noite, as suas classificações escolares, e até os seus conflitos com a irmã mais nova. Parecia que os pais viviam em planetas distintos, com regras de funcionamento incompatíveis e não se cansavam de tentar mostrar ao outro que ele/ela estava errado. As coisas complicaram-se ainda mais quando, recentemente, a Joana foi encontrada na casa de banho da escola a fumar haxixe com uma colega. Ela garantiu que só experimentou uma ou duas vezes e que nunca tentaria drogas duras, mas os pais entraram em pânico e, na escola, os colegas com que se dava antes recusam agora a sua companhia.


Filipa para Sílvia

• Joana tem esquizofrenia paranóide;

• Não tem a certeza se está hospitalizada;

• Os problemas começaram quando os pais se divorciaram;

• Joana não conseguia gerir aspectos como a gestão das horas de chegada a casa, as discussões com a irmã;

• Pai – dominador/ Mãe – submissa;

Foi apanhada no WC da escola a fumar haxixe com uma colega;

• Os pais entraram em pânico mas ela prometeu-lhes que estava apenas a experimentar e que não passaria para outros tipos de droga;


Sílvia para Sandra

• Joana com esquizofrenia paranóide;

• Não tem a certeza se está hospitalizada;

• Os problemas começaram com o divórcio dos pais;

• Joana não conseguia gerir os problemas do dia-a-dia;

• Pai – dominador/ Mãe – submissa;

• Foi apanhada no WC a fumar haxixe com uma colega;

• Os pais ficaram em pânico mas ela prometeu que não passava a drogas mais pesadas;


Sandra para Sofia

• Joana com esquizofrenia paranóide;

• Não sabe se está hospitalizada ou não;

• C

omeçou a piorar devido ao divórcio dos pais;

• Pai – controlador/ Mãe – submissa;

• Esquizofrenia começou a interfer

ir na vida dela – não tinha controlo no dinheiro ou nas saídas à noite;

• Episódio marcante foi quando fumou

haxixe no WC da escola e os pais souberam do sucedido – prometeu que não ia fumar drogas mais pesadas;

Sofia para Raquel

• Joana tinha esquizofrenia paranóide;

• Não sabe se está hospitalizada ou não;

• Começou a piorar quando os pais se divorciaram;

• Começou a ter problemas no dia-a-dia – interferência na gestão do dinheiro;

• Episódio marcante – fumou haxixe no WC com uma amiga; os pais souberam, chatearam – se e ela prometeu que nunca mais fumava drogas leves ou pesadas;


Raquel para Vera

• Era uma menina chamada Joana com esquizofrenia paranóide;

• Era anti-social e muito tímida;

• Começou a dar-se com más companhias;

• Foi apanhada a fumar haxixe no WC e os pais apanharam-na e zangaram-se muito com ela; a Joana prometeu nunca mais repetir;


Vera para Sónia

• História da Joana que tinha esquizofrenia paranóide;

• Era anti-social e muito tímida;

• Começou a dar-se com más companhias;

• Os pais apanharam-na no WC a fumar haxixe, ralharam muito com ela e ela prometeu nunca mais o fazer.


Conclusões das Observadoras:

• As duas primeiras versões foram muito idênticas;

• Na terceira versão começaram a ser modificados alguns pormenores (deram ênfase à história);

• Na quarta versão são omitidos alguns aspectos (“pai – dominador/ mãe – sub

missa” e “wc da escola”) e acrescentados outros ( “drogas leves e pesadas”);

• Na quinta versão dá-se uma grande

alteração. São omitidos muitos aspectos e acrescentadas características à história;

• Na versão final foram omissos pormenores introduzidos pela colega que contou a versão anterior.


Conclusões Finais:

No processo de “transmissão” desta mensagem verificaram-se alguns aspectos curiosos. Em primeiro lugar foi possível perceber que ninguém no grupo esqueceu que a Joana sofria de esquizofrenia paranóide. Assim, recorreu-se sempre a este rótulo (que se manteve intacto até à versão final) para criar a narração, sendo possível constatar a necessidade que todos nós temos de atribuir “nomes às coisas” como forma de dar um sentido à história. Desta forma contaram-se diferentes histórias consoante as diferentes rotulações atribuídas, verificando-se que, quanto mais grave este é, maior é o nível de distorção que a história atinge (Lourenço, comunicação informal, Novembro de 2008).

Quase como no jogo do “telefone estragado”, neste exercício cumpriu-se o ditado popular que diz que “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, tendo sido adicionados e omitidos diferentes aspecto que tendiam a “confirmar” o rótulo que havia sido atribuído à Joana logo no início. Tal permite-nos reconhecer a tendência social que existe para categorizar os indivíduos, rotulando-os e atribuindo-lhe características que confirmem esse diagnóstico. Assim, manuais como a DSM IV – TR delimitam um conjunto de critérios de diagnóstico que permitem tal definição dos indivíduos, como forma de conferir objectividade aos comportamentos humanos. Por outro lado foi ainda possível constatar que na narração final já não se fala da relação dos pais da Joana, que era fulcral na história, tendo-se “perdido” no decorrer do exercício. Apenas a Joana foi focada em todas as narrações, o que comprova a forte ligação que une os rótulos à psicopatologia individual. Neste sentido, e tal como também já foi referido na última temática deste portfólio, verifica-se que a definição de doença mental apresentada pela DSM IV – TR se centra, sobretudo, no indivíduo, esquecendo-se todo(s) o(s) sistema(s) que o envolvem e de que faz parte, influenciando-se mutuamente. Esta tendência geral para fazer julgamentos deste tipo (i.e., centrando a dificuldade no indivíduo) no dia-a-dia mostra-nos apenas que, tal como nos relata a metáfora, o essencial pode ser visível aos olhos, no entanto é muito difícil interpretar de forma correcta e isenta de juízos, aquilo que vemos. Enquanto terapeutas temos que ter este aspecto sempre em conta, pois cabe-nos a nós, “ver com outros olhos” superando a limitação da visão do senso comum (DSM-IV TR, 2000; Lourenço, comunicação informal, Novembro de 2008).

Um comentário:

Anônimo disse...

Dentro do "esquema geral"